quinta-feira, 23 de outubro de 2014

aviso

a quem vier a seguir
pessoa estranha ao serviço
ou conhecido da casa
funcionário, despedido,
tenha ou não cuidado com o cão,
faça silêncio no hospital
e respeite a sinalização de trânsito,
toda a gente sabe
fumar mata
porque contém benzenos e o raio q'o parta,
atravesse na passadeira pintada de fresco
para comprar medicamentos sob receita médica
que não pode tomar em excesso,
em todo o caso,
o telefone do centro de informação antivenenos:
808 250 143
cuidado com o sol
o sal
o colesterol
reduza a velocidade com o motor
e mantenha a distância de segurança
principalmente dos seguranças
o mesmo com os polícias
que se mantêm afastados do fogo
como o antibiótico longe de crianças
e guardado em lugar fresco e seco,
não pode devolver o rissol depois de comprado, nos termos da lei
temos livro de reclamações caso seja menor e não lhe vendam
a bebida alcoólica
ou mesmo que aparente deficiência psíquica ou estado de embriaguez
em caso de persistência dos sintomas,
deixe a porta aberta.


quarta-feira, 8 de outubro de 2014

- sem título -

quantas vezes os sussurros são beijos
e os murmúrios são a língua no contorno das tuas ancas
quantas vezes a semente é um líquido no teu peito
e o fruto o teu olhar fulminante
quantas vezes as mãos são víboras que te acendem com um veneno de chamas
a luz do quarto é a lua lá fora
e a cama em que me deito o pulsar do teu corpo incandescente

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

- sem título -

fossem todas as flores 
um vórtice
e nunca mais pisaria um jardim
apesar da gravidade das pétalas
singularidades
sobre o tempo e a luz 
que vivem dentro do peito 
dos estúpidos que vêem a vida como um rastilho
enterrado sob a pele prestes a fazer explodir
pela boca as florestas todas do mundo

terça-feira, 30 de setembro de 2014

sem título

nunca tive jeito para fazer primaveras
a não ser em origami.

mas um outono desfolha os corpos como despe árvores
e acorda todos os poetas do mundo
quando a chuva cai lá fora
e a respiração embacia os vidros das janelas por dentro.

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

imersão

inspirei a luz da madrugada
no primeiro cigarro
e a névoa doce fez-me
crescer no dorso as asas negras
de um nefilim que nunca existiu
por desconhecer a alma e a substância
do chão do ar e não saber das gotas
pulverizadas pelas ondas do mar

agarrei fechada a mão
duas insistentes pedras e não vim mais à superfície
da respiração
apneia permanente permanente fluido.

quinta-feira, 26 de junho de 2014

com as mãos

com as mãos o terreno
com as mãos sulcado
com as mãos o corpo
e os dedos
agarrado
com as mãos o cabelo
punho fechado
com as mãos a anca
suave e um beijo
com as mãos o orvalho
frio na pele
com as mãos um toque
um lábio
um sopro
com as mãos um deslizar leve
sobre o sobrolho
com as mãos um aperto
contra a parede
contra o corpo
contra as mãos
as nádegas com as mãos
encostadas
com as mãos a roupa
despida
no chão

terça-feira, 1 de abril de 2014

sem título

queremos todos respirar um ar 
que não seja uma lâmina em chamas
a sangrar-nos a garganta e os pulmões
e queremos todos poder ouvir o bater 
simples, tum-tum, tum-tum,
dos nossos corações.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

do fogo

a mais bela igreja é a que arde
e o mais belo fogo é o das asas dos corvos
da imaginação
que nos libertam da luz bíblica que nos ofusca.
a regra mais inflexível é a que não se aplica
e o tempo só nos esgota porque não se volta atrás.
o caminho é de lava apesar de escuro
e quem não sente caminha descalço,
os loucos porém seguirão no dorso de cavalos alados
voando no ar de cinzas até ao mar onde repousam mortos
os lúcidos.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

alma

fechei na palma da mão uma concha
com o murmúrio do mar em ondas
de chamas.

beijou-me a face salgada o vento
enquanto da concha a todo o custo
tenta fugir a minha alma em fumo negro.

refém de um búzio na  mão fechada
dentro de uma espiral com cores de interferência.

é uma espécie de caranguejo-eremita em habitação indesejada.

lá fora, o mar e o céu. a liberdade além do mar, além do céu, além de tudo.
além das flores, do chão, do prado e do vulcão. lá fora, a liberdade, além da praia, do caixão,
além das pedras, das árvores, da fruta de verão.

lá fora, as cidades, e algumas crianças, escutam o sussurro do mar
que sou eu preso dentro de um búzio na minha mão.